Desde que se espalhou a notícia extraída do censo
demográfico do IBGE de 2000, Nova Ibiá, vilarejo de 7 000 habitantes no
interior da Bahia, ganhou um estigma e uma obsessão. Como os números do censo
mostravam que 59,85% dos seus habitantes diziam não ter religião alguma, Nova
Ibiá passou a conviver com o estigma de ser a cidade mais atéia do Brasil. Em
nenhuma outra, em ponto algum do país, tanta gente dizia não ter filiação religiosa.
A segunda cidade com a maior tropa de sem-religião era Pitimbu, no interior da
Paraíba, mas com números mais modestos – 42,44%. Desde então, a obsessão de
Nova Ibiá é livrar-se do estigma do ateísmo. “Conheço dois ou três ateus, e só.
Isso não é verdade”, diz Raimundo Santana, bispo da Igreja Batista, atualmente
ocupado em preparar os festejos do ano que vem, quando sua igreja completará
100 anos na região. “Não acredito nisso, nunca ninguém aqui me disse que não
tem religião”, reforça Albervan da Silva Cruz, o primeiro padre a residir em
Nova Ibiá. “A cidade mais atéia? Não é verdade”, sentencia o prefeito José
Murilo Nunes de Souza, de 41 anos, com a autoridade de quem confessa, meio a
contragosto, que se criou católico, mas não tem religião.
Os porta-vozes de Nova Ibiá, um povoado que fica nos confins
da falida zona cacaueira da Bahia, estão em harmoniosa sintonia com a maioria
dos brasileiros. No maior país católico do planeta, no país do sincretismo
religioso, no país onde católicos têm benzedeira e evangélicos vão a sessões
espíritas, no país que alega, num misto de gracejo e esperança, ser a terra
natal de Deus, o Todo-Poderoso, quase nada é pior do que ser ateu. Uma pesquisa
encomendada por VEJA, realizada pela CNT/Sensus, mostra que 84% dos brasileiros
votariam em um negro para presidente da República, 57% dariam o voto a uma
mulher, 32% aceitariam votar em um homossexual, mas – perdendo de capote –
apenas 13% votariam em um candidato ateu (veja quadro). Pior que isso só o
capeta. O levantamento mostra que, entre os grupos populacionais que se
convencionou chamar de minorias – racial, sexual ou de gênero –, a minoria mais
rejeitada é a religiosa, ou a anti-religiosa. No Brasil de São Frei Galvão,
portanto, ser temente a Deus é mais do que uma marca nacional – chega a ser,
informa a pesquisa, um imperativo social.
Às vésperas do Natal, quando 2,1 bilhões de cristãos vão
comemorar os 2 007 anos do nascimento de Jesus Cristo, os católicos brasileiros
seguem diminuindo ano após ano, como vem acontecendo desde 1940, mas ainda
formam uma estupenda multidão: são quase 74% da população brasileira – o que
equivale a mais de 130 milhões de fiéis. Com alguns disciplinados e praticantes
e muitos displicentes e relapsos, os católicos do Brasil, com seu número espetacular,
mostram o vigor da crença divina, a pujança da fé, a robustez de Deus – uma
potência curiosamente dotada de todas as qualidades inversas às da humanidade,
que é criada (e Deus é incriado), que é limitada (e Deus é ilimitado) e que é
mortal (e Deus é imortal). Os números da fé no Brasil talvez sirvam como
explicação para dois fenômenos. Explicam a resistência da religiosidade em um
mundo marcado pela descrença e, ao mesmo tempo, o notável preconceito da
maioria dos brasileiros em relação aos ateus. Faz sentido rejeitar alguém
apenas porque não acredita em Deus?
“Faz todo o sentido”, afirma a historiadora Eliane Moura
Silva, professora da Universidade Estadual de Campinas e especialista em
religião, ela própria uma atéia. “O brasileiro ainda entende o ateu como alguém
sem caráter, sem ética, sem moral.” É um entendimento que parece espalhar-se de
modo mais ou menos homogêneo por todas as classes sociais. Recentemente, a
historiadora deu duas aulas sobre ateísmo na Casa do Saber, instituição criada
para eliminar lacunas intelectuais dos endinheirados de São Paulo, e a platéia
teve uma reação adversa, quase hostil, às idéias ateístas. Antes, a
neurocientista Silvia Helena Cardoso, doutora em psicobiologia pela
Universidade da Califórnia, em Los Angeles, publicou um artigo num jornal de
Campinas discutindo se os santos seriam esquizofrênicos, dada a freqüência com
que tinham visões – ou alucinações. Recebeu tantas ameaças que resolveu
abandonar o assunto. O professor Antônio Flávio Pierucci, da Universidade de
São Paulo, especialista em sociologia da religião, explica o fenômeno: “Os
brasileiros não estão habituados a se confrontar com a realidade do ateu”. É o
que leva os políticos – antes, durante e depois da eleição – a sempre dizer que
ninguém é mais temente a Deus do que eles.
Em maio passado, o instituto Datafolha fez uma pesquisa
sobre religiosidade por ocasião da visita ao país do papa Bento XVI. A pesquisa
relevou a dimensão impressionante da fé brasileira: 97% disseram acreditar na
existência de Deus, 93% informaram crer que Jesus Cristo ressuscitou depois de
morrer crucificado e 86% concordaram que Maria deu à luz sendo virgem. Com números
tão possantes, não há dúvida de que o Brasil figura entre os países mais
crédulos do mundo – e isso abre um paradoxo. São cada vez mais abundantes as
descobertas científicas sobre a origem do universo e das espécies. Se a
credulidade não se abala diante disso, é lícito questionar que talvez nenhuma
prova científica, por mais sólida e contundente, seja capaz de reduzir a pó o
teísmo, a crença no divino “O último
deus desaparecerá com o último dos homens”, diz o filósofo francês Michel Onfray,
em seu Tratado de Ateologia, sucesso retumbante com mais de 200.000 exemplares
vendidos na França. E, ateu convicto, ele alfineta: “E com o último dos homens
desaparecerão o temor, o medo, a angústia, essas máquinas de criar divindades”.
Antes que o último homem se vá, percebem-se aqui e ali
sinais de que a religião, em que pese seu vigor, começa a perder público – no
Brasil, inclusive. De 1940 a 1970, a turma dos brasileiros sem religião ficou
praticamente do mesmo tamanho, atolada em menos de 1% da população. Nas últimas
três décadas, saltou de 1,6% para 7,3% (veja gráficos e mapa). Os sem-religião
já são o terceiro maior grupo, atrás de católicos e de evangélicos. Pelos dados
do último censo, os sem-religião eram 12,5 milhões, mais que um Portugal
inteiro. Não são todos ateus, é claro. Entre eles, há agnósticos, secularistas,
céticos e até quem acredita em Deus, mas não pratica nenhuma religião. O IBGE
não pergunta aos entrevistados se são ateus ou não. Calcula-se, no entanto, que
os ateus sejam uns 2%. Nos Estados Unidos, eles oscilam nessa faixa, mas os
sem-religião de lá chegam aos 15%. No mundo, os ateus são uns 4%. São poucos,
sobretudo se comparados aos bilhões de cristãos, muçulmanos e judeus, para
ficar apenas nas três grandes religiões monoteístas, mas é uma massa crescente,
principalmente nos países desenvolvidos. Na Espanha, Alemanha e Inglaterra,
menos da metade da população acredita em Deus. Na França, os crentes não chegam
a 30%.
Entre os brasileiros sem religião, a maior curiosidade está
na Bahia de Todos os Santos, terra onde frei Henrique de Coimbra rezou a mítica
primeira missa, em 26 de abril de 1500. A Bahia, que abriga Nova Ibiá e seu
esquadrão de sem-religião, é o terceiro estado com o maior contingente de
brasileiros sem filiação religiosa. E Salvador, entre as capitais, é a campeã
nacional: 18% dos soteropolitanos não têm religião. Considerando-se o país
todo, os sem-religião são mais numerosos entre os homens e entre os brasileiros
com menos de 55 anos. Não se sabe de onde eles vêm. É provável que venham do
rebanho de católicos desgarrados. O Rio de Janeiro, por exemplo, é o estado
menos católico do país e, simultaneamente, tem o maior pelotão de sem-religião.
Também é certo que boa parte dos católicos está virando neopentecostal. Nas
duas últimas décadas, à queda acentuada de católicos correspondeu uma alta
igualmente acentuada de evangélicos – em especial da Igreja Universal do Reino
de Deus, que, sendo uma voraz sugadora de fiéis e dízimos, se transformou em
potência divina e comercial.
A raiz do fenômeno que irriga o crescimento de evangélicos e
de sem-religião faz parte da mesma genealogia: os laços étnicos e culturais de
boa parte dos brasileiros estão se desfazendo como resultado da modernidade –
do que a modernidade traz de positivo, como o aumento da escolarização e a
crescente profissionalização de certas camadas sociais, e do que traz de
negativo, como a desestruturação das famílias e a favelização das metrópoles. “É
a religião atuando como solvente”, diz o professor Flávio Pierucci, da USP.
Seus números apóiam sua percepção. Um laço étnico que se desfaz: entre os
adeptos do candomblé, credo de origem africana, 40% são brancos. Outro: nos
cultos afro-brasileiros há cerca de 100.000 negros, e nos cultos evangélicos os
negros já são 1,7 milhão. Mais um: os brasileiros que trocam o catolicismo pelo
neopentecostalismo estão dissolvendo um laço cultural e histórico, substituindo
a religião fundadora do Brasil, herança que vem do fundo do passado colonial,
por uma novidade na cena religiosa do país. É aí, nesse processo de dissolução,
que crescem os ateus e os sem-religião.
Por razões distintas, o ateísmo também é crescente lá fora.
Nos Estados Unidos, o embate entre religiosos e sem-fé ficou mais intenso
depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, praticados por dezenove
muçulmanos, e da eleição do presidente George W. Bush, o astro da direita
cristã que se julga interlocutor de Deus. Com os cristãos conservadores
exercendo notável influência em tribunais e escolas, os Estados Unidos são um
caso único entre os países ricos e democráticos. Nenhum outro tem grau tão
elevado de religiosidade – e de radicalismo. Em 2001, os mais fanáticos líderes
religiosos americanos, em vez de condenar os atentados, disseram que eram uma
punição contra um país que aceitava o aborto e o homossexualismo... Nesse
ambiente, a literatura sobre o ateísmo tem feito barulho e sucesso, como é o
caso do biólogo inglês Richard Dawkins, autor de Deus, um Delírio, do
jornalista inglês Christopher Hitchens, que mora em Washington e escreveu Deus
Não É Grande, e do filósofo americano Sam Harris, autor de Carta a uma Nação
Cristã, um manifesto cortante em defesa do ateísmo (veja entrevista).
Ainda que sua história seja pouco conhecida, o ateísmo
nasceu junto com a primeira religião, mas só entrou no cardápio das idéias
abertamente debatidas com o advento do iluminismo, no século XVIII. Assim como
os crentes, que se dividem em uma miríade de correntes e denominações, os ateus
de hoje divergem em muitos pontos, mas há alguns consensos. Um deles é que a
moralidade não depende das religiões, e, portanto, um ateu pode ser ético e
bom. A favor da tese está a neurociência, cujas descobertas já provaram que até
os chimpanzés têm noções morais, sentimentos de empatia e solidariedade – e não
rezam nem crêem em Deus. Outro ponto em que todos os autores sobre ateísmo
concordam é que as religiões produziram (e ainda produzem) notável rastro de
sangue. Além dos exemplos clássicos das Cruzadas dos cristãos ou da expansão
islâmica à base da espada, há exemplos contemporâneos. Na Irlanda do Norte,
protestantes lutam contra católicos. Na Caxemira, são muçulmanos contra hindus.
No Sudão, cristãos contra muçulmanos, que também se confrontam na Etiópia, na
Costa do Marfim, nas Filipinas... Crentes de diferentes religiões ou
denominações guerreiam no Irã, no Iraque, no Cáucaso, no Sri Lanka, no Líbano,
na Índia, no Afeganistão...
É evidente que a
moralidade não é mesmo resultado da religião, mas também não é resultado de sua
ausência. Adolf Hitler (1889-1945), que planejou dizimar um povo inteiro, se
dizia religioso. Josef Stalin (1879-1953), cujas vítimas fatais podem chegar a
20 milhões de soviéticos, se dizia ateu. Os religiosos também concordam que a
fé já provocou guerras e violência. Em outubro passado, o papa Bento XVI, num
encontro em Nápoles com lideranças multiconfessionais, conclamou a todos para “reiterar
que a religião nunca poderia ser um veículo do ódio”. Mas também se sabe que as
religiões já contribuíram para a paz e desempenham um valoroso trabalho
missionário nas áreas mais miseráveis do planeta. Ninguém pode afirmar que os
deuses, os livros sagrados e as preces são uma criação do homem, sem nenhuma
intervenção divina. Também ninguém pode garantir o contrário. Sendo assim,
enquanto a idéia de Deus, a imagem do menino Jesus na manjedoura ou o espírito
do Natal servirem para confortar e congregar milhares, milhões, bilhões de
seres humanos, é bom que a fé possa seguir contribuindo para levar paz a homens
e mulheres. Incluindo os moradores da pequena Nova Ibiá.