Sessenta anos se passaram desde o grande momento-chave do
Brasil moderno: 24 de agosto de 1954. Um tiro no peito, em seu quarto, no
Palácio do Catete, silenciava o maior líder de nossa República: Getúlio
Dornelles Vargas. Maior, apressamo-nos em dizer, quanto à abrangência de suas
ações e o impacto exercido, não quanto a seus méritos ou valores.
Disse Nelson Rodrigues, em seu “A Menina sem estrelas”, que
o clima político, hostil ao então presidente eleito (que, por 15 anos, havia
sido, desde a chamada Revolução de 30, um ditador que rasgou mais de uma
Constituição para se perpetuar no poder), se transformara completamente.
Canalizando a oposição, o udenista Carlos Lacerda, de tribuno aclamado,
passava, aos olhos de muitos, a “assassino de um suicida”. Uma inflexão tão
drástica se explica pelo peso inegável da figura do gaúcho de São Borja no
curso da história verde e amarela. Se vivemos em uma pátria gestada pelos
portugueses, tendo tido seu alvorecer no projeto avançado de José Bonifácio,
com razão podemos ver em Vargas o pai do Brasil moderno – leia-se: o símbolo
histórico mais pleno das opções equivocadas que fizemos como nação.
O silêncio que Getúlio impôs a si mesmo foi restrito à sua
atuação direta no mundo; sua maneira de fazer política e seu legado negativo
para a conformação do Estado brasileiro, no entanto, permanecem fazendo grande
barulho. O momento, para liberais e conservadores, serve para suscitar a
reflexão sobre essa marca registrada getulista; serve para compreendermos
melhor uma das legítimas assinaturas originais de boa parte do que enfrentamos
hoje.
Vargas, por certo, perseguiu os comunistas em sua época.
Porém, em um governo com óbvias inspirações fascistas, em diversos aspectos o
aparato institucional e o encaminhamento econômico que valorizou seguiram uma
linha similar a dos seus declarados inimigos: o Estado-leviatã, o Estado gigante,
o Estado enfiando o bedelho em todas as instâncias possíveis. O Estado que
declarava com estridência seu poder, na emblemática cena da queima das
bandeiras estaduais, numa clara afronta getulista à mínima descentralização
desejável. A esse esquema que embasou a urbanização e industrialização do
Brasil no período, Getúlio uniu sua personalidade carismática e conciliadora,
que, em boa medida de forma independente de quaisquer convicções, unia em
benefícios e fisiologismo diferentes legendas e atores políticos nacionais.
Havia sempre, para Getúlio, um “jeitinho” – similar ao que partidos e políticos
sem nenhum princípio verdadeiro encontram hoje, em busca apenas de ocupar
cargos e se servir deles. Não podemos apontá-los hoje, aos montes, agindo do
mesmo modo?
Aos getulistas, durante o governo constitucional nos anos 50
– ao qual Getúlio foi conduzido muito em função do poderoso esquema partidário
e burocrático que construiu a seu favor no período ditatorial -, incomodava
bastante também o barulho da imprensa, denunciando escândalos e fracassos.
Tanto que surgiu a ideia de financiar a Última Hora de Samuel Wainer, sempre
pronta para defender e enaltecer o presidente. Bradavam pela tolerância e pelo
comedimento da imprensa, quando seu idolatrado líder controlou amplamente os
meios de comunicação não havia muito tempo, com a força de seu Departamento de
Imprensa e Propaganda. Intrometia-se o Estado em todas as manifestações
culturais que podia, financiando aquilo que o enaltecesse. Em 1951, portanto no
começo do governo eleito de Getúlio, este entusiasta do samba que ora escreve
não pode deixar de registrar o samba-enredo do Império Serrano, que aclamava o
“eminente estadista Getúlio Vargas”, aquele que “sempre socorreu a pátria em
horas amargas”. Perguntamos: hoje, agigantando-se sobre a cultura – por
exemplo, mediante a lei Rouanet e sua persistência em facilitar as coisas para
os “amigos do rei” -, não age o Estado com a mesma tacanha presunção varguista?
No trato com a mídia e com as incômodas propostas de regulação, não quer o PT
ir ainda além do velho gaúcho?
E quanto aos títulos e às medidas populistas? Não diremos
que Vargas inventou isso, mas certamente consagrou o modelo. O “pai dos pobres”
conquistou amplas simpatias, e ainda hoje é lembrado com reverência por muitos,
pelas suas leis trabalhistas. Será sempre um ponto positivo, que nos obrigamos
a reconhecer, a concessão do voto feminino, ainda que então restrito a mulheres
casadas e com função pública remunerada. Quanto ao resto, já é hora de os alarmistas
estatizantes não se chocarem com as necessárias críticas à CLT e às restrições
do relacionamento empregatício, muitas delas vendidas como benefícios ao
trabalhador, mas que em verdade emperram suas possibilidades e limitam as
potencialidades nacionais. O debate precisa estar aberto; não podemos mais
colocar o velho trabalhismo no pedestal da santidade. Muito por essas
determinações populistas, não se cogita, por parte de nossas esquerdas
tacanhas, a mudança de nome da Avenida Presidente Vargas, por exemplo. Mas a
ponte Costa e Silva pode ter o nome alterado, assim como o colégio Médici – que
pode passar a ter o nome de um comunista assassino, Marighella. Ora, não foi
Getúlio um ditador muito mais completo e assassino que os nossos sempre tão
massacrados militares de 1964?
Essa maneira de encarar a memória histórica é um problema
sério; influencia diretamente nosso olhar da política hoje. As esquerdas
redesenham a história, pintando nela, ao sabor de suas conveniências, mocinhos
e vilões; por acabar sendo do interesse delas, mesmo um ditador nacionalista
que, à época, as perseguiu, passa a ser visto com condescendência, pelas
estratégias similares que adotava, a ponto de Luiz Carlos Prestes ter sido
capaz de elogiá-lo depois de ele ter mandado sua esposa grávida para o campo de
concentração nazista de Bernburg. A ponto de os petistas, nos anos 90,
criticarem as reformas mais liberais do governo social-democrata de Fernando
Henrique, acusando o “abandono” do salutar “modelo varguista”! No fundo, com
diferenças de retórica e grau, eles tinham e têm a consciência de serem
variantes de um mesmo fenômeno: a crença totalitária na dissolução do indivíduo
em subserviência ao Estado benfeitor, que nos levaria a uma sociedade
igualitária e a um mundo maravilhoso – apenas na imaginação infantil dos
utopistas. O próprio Getúlio dissera, em 1938, que “o Estado Novo não reconhece
direitos de indivíduos contra a coletividade. Os indivíduos não têm direitos,
têm deveres. Os direitos pertencem à coletividade”.
O varguismo serve de espelho ainda aos políticos de hoje no
vitimismo desesperado e na passionalidade despida de qualquer verniz de razão.
Em sua carta-testamento, registrou o velho líder que “as forças e os interesses
contra o povo coordenaram-se novamente e se desencadeiam sobre mim”. Brada
Vargas contra os “grupos econômicos e financeiros internacionais”, contra os
“lucros das empresas estrangeiras”, contra “a campanha subterrânea” dos grupos
poderosos “revoltados contra o regime de garantia do trabalho”, todos inimigos
da mudança que personificava. Como hoje o PT, há mais de uma década no poder, a
culpar ad infinitum os governos Fernando Henrique, como as esquerdas de hoje a
responsabilizar as potências capitalistas mais bem-sucedidas pelos seus
inevitáveis fracassos, o homem que fora ditador com amplos poderes por 15 anos
e dominou o cenário político não atribuía se não às “malignas forças externas”
a culpa por quaisquer problemas tupiniquins.
“Saio da vida para entrar na história”, sentenciou o
caudilho. Ele o fez, fora de discussão. Mas não só. O varguismo não é apenas
História; instrumentalizado por uma esquerda que tem muito mais afinidades com
o antigo anticomunista do que ele possivelmente admitiria, ele está entronizado
no Estado brasileiro de tal modo que discutir Vargas é discutir o Brasil de
hoje – infelizmente, muito mais pelo lado do que está errado. Ao identificar
sua marca registrada na política nacional e a semelhança inconfundível com as
artimanhas do petismo, precisamos fazer com que Vargas cumpra tão-somente seu
próprio vaticínio, e não vá além. Que fique na História, e não em nossas vidas.
*Acadêmico de Comunicação Social