‘Respeito instruções, respeito leis, mas não respeito
caprichos nem ordens manifestadamente ilegais.” A declaração, concedida ao jornal “A Tribuna”, de Vitória
(4/5), deveria constar no alto de um manual de conduta dos funcionários
públicos. É do diplomata Eduardo Saboia e tem endereço certo.
Saboia chefiava a embaixada brasileira em La Paz até a
sexta-feira, 23 de agosto de 2013, quando decidiu que um limite ético fora
ultrapassado e orquestrou a fuga do ex-senador boliviano Roger Pinto Molina
para o Brasil. Hoje, o diplomata sofre a covarde punição tácita do ostracismo:
a comissão de sindicância aberta no Itamaraty, com prazo previsto de 30 dias,
segue sem uma resolução depois de oito meses.
O cineasta Dado Galvão prepara um importante documentário
sobre a saga de Molina e Saboia. Será uma história incompleta, pois uma longa
série de detalhes sórdidos permanece soterrada pela lápide do sigilo que
recobre tanto as comunicações entre a embaixada e Brasília quanto os autos do
processo administrativo contra Saboia. Mas o que agora se sabe já é de
enrubescer cafetões.
Depois de receber asilo diplomático do governo brasileiro,
Molina permaneceu confinado na embaixada em La Paz durante 15 meses. Enquanto o
governo boliviano negava a concessão de salvo-conduto para que deixasse o país,
ele não teve direito a banho de sol ou a visitas íntimas.
A infâmia atingiu um ápice em março de 2013, quando
emissários de Brasília reuniram-se, em Cochabamba, com representantes do
governo boliviano para articular a entrega do asilado aos cuidados da Venezuela.
A “solução final” só não se concretizou devido à crise
desencadeada nas semanas finais da agonia de Hugo Chávez. No lugar dela,
adotou-se a política da protelação infinita, que buscava quebrar a resistência
de Molina, compelindo-o a render-se às autoridades bolivianas.
Cochabamba é um marco no declínio moral da diplomacia
brasileira. A embaixada em La Paz ficou à margem das negociações. O embaixador
Marcel Biato, que solicitava uma solução legal e decente para o impasse, foi
sumariamente afastado do cargo. (De lá para cá, circulando sem funções pelos
corredores do Itamaraty, Biato experimenta um prolongado ostracismo.)
Molina, por sua vez, teve o direito a visitas restringido a
seu advogado e sua filha. Uma ordem direta de Brasília proibiu a transferência
do asilado para a residência diplomática, conservando-o num cubículo da
chancelaria. Naqueles dias, vergonhosamente, o ministro das Relações
Exteriores, Antônio Patriota, chegou a flertar com a ideia de confisco do
celular e do laptop do asilado.
Convicções, crenças, valores? Nada disso. Dilma Rousseff
conduziu todo o episódio premida pelo temor — ou melhor, por dois temores
conflitantes. No início, por sugestão de Patriota, concedeu o asilo diplomático
temendo a crítica doméstica — e, pelo mesmo motivo, não o revogou na hora da
reunião de Cochabamba.
Depois, a cada passo, temendo desagradar a Evo Morales,
violou os direitos legais de Molina, entregou à Bolívia o escalpo do embaixador
Biato e converteu Saboia em carcereiro do asilado. As concessões só estimularam
o governo boliviano a endurecer sua posição.
A prorrogação abusiva da prisão dos 12 torcedores
corintianos em Oruro foi uma represália direta da Bolívia contra o Brasil. O
patente desinteresse de Brasília pela sorte dos cidadãos brasileiros encarcerados
representou uma nova — e abjeta — tentativa de apaziguamento.
Saboia assumiu o comando da embaixada após o afastamento de
Biato, e tentou, inutilmente, acelerar a valsa farsesca das negociações
conduzidas por uma comissão Brasil/Bolívia formada à margem da representação
diplomática em La Paz. Cinco meses depois, rompeu o impasse, aceitando os
riscos de transferir Molina para o Brasil.
Em tempos normais, o diplomata que fez valer a prerrogativa
brasileira de concessão de asilo seria recepcionado de braços abertos pelo
governo brasileiro. Mas, em “tempos
de Dilma”, o mundo está virado do
avesso.
Antes que os familiares de Saboia pudessem deixar a Bolívia,
o governo transmitiu à imprensa o nome do responsável pela fuga do asilado. Na
sequência, reservou-se a Saboia um lugar permanente na cadeira dos réus.
Tempos de Dilma, uma era de “ordens ilegais” e “caprichos”. A presidente expressou, em público e pela imprensa, sua
condenação prévia de Saboia antes da abertura da investigação oficial. Pela
primeira vez na História (e isso abrange a ditadura militar!), uma comissão de
sindicância do Itamaraty não é presidida por um diplomata, mas por um assessor
da Controladoria-Geral da União que opera como interventor direto da
Presidência da República.
“É evidente que
existe uma pressão política”,
denuncia Saboia. “Há uma sindicância
que não está, pelo visto, apurando os fatos que levaram uma pessoa a ficar
confinada 15 meses; está voltada para me punir.”
Em março, emanou da comissão um termo provisório de
indiciação que omite os argumentos da defesa e cristaliza as mais insólitas
acusações — inclusive a de que Saboia violou os “usos e costumes” (!!!)
da Bolívia.
A mesquinha perseguição a Biato e Saboia não é um caso
isolado, mas a ponta saliente de uma profunda deterioração institucional: pouco
a pouco, o Estado se converte numa ferramenta de realização dos desígnios dos
ocupantes eventuais do governo.
Não é mais segredo para ninguém que o governo ignora
solenemente as violações de direitos humanos em Cuba e na Venezuela. Menos
divulgado, porém, é o fato de que a política externa do lulopetismo tem
perigosas repercussões internas: no Comitê Nacional para os Refugiados
(Conare), um órgão presidido pelo Ministério da Justiça, as solicitações de
refúgio político de dezenas de bolivianos dormem no limbo.
“Não respeito
caprichos nem ordens manifestadamente ilegais.” No Brasil de Dilma, quem diz isso é réu. A presidente exige
obediência cega. Vergonha.